quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Sal

É de dar agonia
Um dia de tanto sal
Que cobre as planícies
E arrasa a língua.
A boca se morde, exaspera,
Sem saber o que esperar
Além da próxima duna.
É de calar teu calado
E de rolarem as horas
Que se amontoam
Como praganas nuas.
É de se chorar
A inexistência de choro
Que se represa
No profundo do chão
Implorando estourar.
É de tonteio
A distante miragem
Do contorno de teu corpo
Envolto na névoa do sol.
É insano
O eterno exílio
De um único dia
Enterrado aos ouvidos
Num deserto de sal.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Romance

(Escrito em 26 de Novembro de 2008)

Posso comer chocolate
A meu jeito?
Hoje quero amargo,
Amanhã o quero doce,
Mas sempre derretendo
Tão suave
Entre meus lábios.
Não pare de trazer-me chocolate;
Faça-me passar mal,
Dizer não,
E continue.

Quero só o teu chocolate,
Que mais que puro cacau
Viciou-me;
Esse desejo
Que ainda vai me matar
De um jeito doce ou amargo
Que eu vou amar.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Dia

Cava um pouco aqui
E é possível que encontres
Só terra.
Esculpe
E sobrará pedra.
Desculpe,
Hoje não é um bom dia.
Faltou no trabalho um rendimento
E no meu amor um pouco de afeto.
Se quiseres falar,
Fala aí, ao vento,
Que eu ouço aqui,
Ao relento,
E quem sabe alguma palavra consiga ficar.
Se quiseres beber,
Bebo junto,
Que esse dia requer um conjunto
De bossa, poesia, cigarro e cerveja.

The longing

(Escrito em 20 de Maio de 2008)

Estar sem você se resume
A fazer bolhas de sabão:
Talvez surjam sob um arco-íris,
Sejam grandes,
Lindas,
Eufóricas,
Champânicas,
Mas sempre estouram no assoalho bruto.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Formação

Cansei dos dias
Em que vossos mundos me devoravam
E vossas palavras rodeavam as minhas.
Fiquem com a parafernália
De parabrisas e parapeitos
Enquanto eu abro os braços sob o vento
E o corpo sobre o infinito.
Engulam os canivetes;
Eu não tenho a obrigação de suportá-los.
Esquecem que tenho aqui espadas
Que contra vós nunca levantei.
Agora degusto a rua
Com minha própria língua;
Devorarei sem contenções
O incrível, o horroroso
E cuspirei o medíocre.
Vossas papilas já não me dizem com precisão
O que devo querer.
Por isso, sim, começarei com o que dizeis podre
Só pelo prazer de ver os semblantes assombrados;
A podridão dá um dos primeiros sabores
Que todo ser deveria descobrir: a autonomia,
E com esse gosto nos lábios
Poderei encontrar as asas que faltam
Para o infinito.
Então percebereis que não só o vosso incrível consegue voar;
Às vezes é o horror que arrepia as penas,
Pois pode ser que os vossos mundos
A mim sejam meros medíocres.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Um longo suspiro

Todos os touros da tourada
Todas as penas do travesseiro
Todos os loucos do manicómio
Todos os poetas da história
Todos os deuses de uma alma
Todas as almas de um só ego
Todas as voltas da mentira
Toda a mentira das verdades
Todos oásis no deserto
Todas as ilhas no oceano
Todo pecado do mundano
Toda primazia do divino
Todos amores do humano
Todos rancores de uma mente;
Todos os tudos
Todos os nadas
E ainda sobra
Desalento.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Inventário

Olha, eu tenho aqui pra vender algumas coisas,
Queria me desfazer de umas velharias
E algumas caixas vazias;
Tem também uns enfeites de jardim,
Um jogo de talheres
E um relógio do meu avô.
Pode ficar com a bicicleta do meu filho
E o computador da minha filha;
Eu lhe faço um preço especial.
Aproveita e leva logo as crianças
E puxa nessa mala meu casamento,
Quem sabe um pingo de moral que ainda guardo na cozinha
E um quadro antigo de ética que está empoeirado no baú.
Faz assim, fica com a minha cabeça
Que a boca já ta meio torta
E os olhos gastados,
Que eu lhe fecho a promoção entregando minha cova.
Mas vê se não se esquece dos enfeites de jardim.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

A roda do violão

(Escrito durante o 1º Semestre de 2009)

A roda do violão
Toca mil melodias
Mas não toca o meu coração
Que se afoga em outras agonias
O fogo daquela fogueira
Aquece as mãos lá no frio
Mas queima na minha memória
A lembrança de um dia vazio
Pois falta no meu abraço
Um pedaço que longe ficou
E dói no fundo do meu peito
A saudade de quem perto amou.

A um palmo do chão

Cabe na palma da minha mão
O mundo que tenho
Some na minha canção
Desafinada o ganha-pão.
Na garganta seca
Tranca a guelra
E busco o sonho.
Que sonho?
Do pão que o ganha-pão
Não complementa;
E faço esse meu complemento
Do suplemento da ilusão:
Num espasmo de delírio
Inspiro o suspiro
Do morto-vivo.
Cabe num trecho de chão
A minha ciranda
E verso cantado.
Aqui essa minha cantiga
Implora e espera
O tilintar assobiado
Entre o asfalto e a moeda.
Então ouça a minha poesia
De olhos viajados
E garganta trincada,
Pois todo o mundo que tenho
Cabe na palma da tua mão.

Cintilante

Contaram uma vez
Alguns contos de fadas
Falando de amor como um fogo repentino;
Mas ninguém há de dizer
Que a lareira que acendi pacientemente
Não é amor.
Eu não sei criar uma faísca
Simplesmente do ar
Que, sem titubear, se faça num sopro.
O meu fogo requer carvão
Que despedace e suma
Entre tantos e tantos sopros.
O meu fogo quer carinho
E afagos eternos.
Meu fogo é mimado, é grudento, ciumento
E não cansa de pedir cuidado;
Não tem a magia das fadas
Mas canta como os anjos.
Meu fogo não se alastra no mundo
Mas brilha à noite, entre dois, na sala de estar;
Meu fogo não se vê dos bosques
Mas pede sempre um buquê de flores ao lado,
Na mesa.
Meu fogo não sobe alto aos céus
E incendeia a paisagem
Mas nunca se cansa nem se apaga.
Meu fogo não só diz 'eu te amo';
Também escreve com suas chamas.
Eu não fogueio como um conto de fadas -
Eu tenho um fogo que quer amar
Um amor que é só meu e teu.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Firmamento

(Escrito em 09 de Junho de 2009)

Era esse
Um amor desses
Que se perdem em si mesmos.
Era uma linha sinuosa
Contornando um mar turbulento;
Uma vista embaçada
E um desejo fraudulento.
Era uma menina,
Um menino,
Dentre os quais não havia fim;
E tanto desfim fiava as almas
Que se desfiavam emoções
E já não se conheciam suas razões.
Era um desses
Amado secreto
Mas indiscreto -
Perdido no mar
Entre o fundo perpétuo
E o céu eterno.
Era o sal nos olhos
Perdido feroz
Nas ondas;
Mas era a espuma
Deitada nas coxas
Incendiando veloz
Os olhares.
Eram eles
Dessas mentes ambíguas
Donde não se encontrava
Menino ou menina,
E no entanto era o amor
Desses completos
Que se complementam
Em febre, em ardor.
E doera nos olhos o sal,
Sufocaram as ondas,
Confundira o segredo
E as emoções desfiadas;
Mas era esse amor
De febre tão intensa
Que os desejos espumantes,
Os olhares trocados,
E almas coladas
Firmaram as asas -
E no firmamento
Perderam-se juntos
Sobrevoando as marés
Profundas e rasas.